- «Imagens de Deus na Literatura Portuguesa nos séc.XIX e XX» – Auditório da Escola Superior de Tecnologia e Gestão – Leiria, 15 e 16 de Março de 2001
por Amélia Pinto Pais,
da Escola Secundária de Francisco Rodrigues Lobo, de Leiria
Esquema geral da comunicação:
- Palavras introdutórias: o órfão de Deus
- Algumas coordenadas para o entendimento de uma ‘evolução’
- Um conhecimento contemplativo de Deus
- Em busca da unidade perdida: o neopaganismo ou uma «nova Igreja» com /Mestre Caeiro e seus «discípulos»/«evangelistas»
- Caminhos para o Oculto, caminhos de gnose / a iniciação Um retomar do êxtase /Sursum corda ! (textos 11 e 12)
- Conclusão :As questões que ficam
«Pertenço a uma geração que herdou a descrença na fé cristã e que criou em si uma descrença em todas as outras fés. Os nossos pais tinham ainda o impulso credor, que transferiam do cristianismo para outras formas de ilusão. Uns eram entusiastas da igualdade social, outros eram enamorados só da beleza, outros tinham a fé na ciência e nos seus proveitos, e havia outros que, mais cristãos ainda, iam buscar a Orientes e Ocidentes outras formas religiosas, com que entretivessem a consciência, sem elas oca, de meramente viver.
Tudo isso nós perdemos, de todas essas consolações nascemos órfãos. Cada civilização segue a linha íntima de uma religião que a representa: passar para outras religiões é perder essa, e por fim perdê-las a todas.
Nós perdemos essa, e às outras também.
Ficámos, pois, cada um entregue a si próprio, na desolação de se sentir viver. Um barco parece ser um objecto cujo fim é navegar; mas o seu fim não é navegar, senão chegar a um porto. Nós encontrámo-nos navegando, sem a ideia do porto a que nos deveríamos acolher. Reproduzimos assim, na espécie dolorosa, a fórmula aventureira dos argonautas: navegar é preciso, viver não é preciso.
Sem ilusões, vivemos apenas do sonho, que é a ilusão de quem não pode ter ilusões. Vivendo de nós próprios, diminuímo-nos, porque o homem completo é o homem que se ignora. Sem fé, não temos esperança, e sem esperança não temos propriamente vida. Não tendo uma ideia do futuro, também não temos uma ideia de hoje, porque o hoje, para o homem de acção, não é senão um prólogo do futuro. A energia para lutar nasceu morta connosco, porque nós nascemos sem o entusiasmo da luta.(....)
(...). O que vivemos foi em negação, em descontentamento e em desconsolo. Mas vivemo-lo de dentro, sem gestos, fechados sempre, pelo menos no género de vida, entre as quatro paredes do quarto e os quatro muros de não saber agir.
(frag.195)
1. Ao aceitar abordar a questão religiosa em Fernando Pessoa , a pedido do meu
amigo e colega Dr. António Gordo, da Comissão Científica destas Jornadas, não pude deixar de colocar-lhe e de me colocar algumas reservas e perplexidades face ao tema proposto.
É que, em primeiro lugar, e sem negar a importância que têm os conteúdos e linhas de sentido de um texto, o meu apreço pela obra de Pessoa se faz sobretudo do ponto de vista estritamente literário /poético e não do ponto de vista dos conteúdos ideológicos / filosóficos que encerra («Era eu um poeta estimulado pela filosofia e não um filósofo com faculdades poéticas», escrevia ele, por volta de 1910); por outro lado, sentia confusamente, do pouco de que me pudera aperceber até aí, que o problema de saber até que ponto Fernando Pessoa era um homem religioso, ele que se confessou uma vez, em 1935,em Nota Biográfica , «cristão gnóstico», ele que em tanto eus diferentes se projectara e se fizera poeticamente, ele que se quisera também um «indisciplinador de almas» — era tarefa algo ingente para o pouco tempo disponível que era o meu, tarefa mais adequada a uma tese de doutoramento em vários volumes e a preparar durante alguns anos.
Sentia também, e verifiquei-o posteriormente quando meti mãos à obra, que não era muita a bibliografia existente sobre esta complicada problemática. Assim:— como iria eu descobrir em tão pouco tempo o Pessoa nos vários Pessoa(s)? No Pessoa Caeiro, António Mora, Ricardo Reis, adeptos de teorias visando a reconstrução de um neo-paganismo de base helénica, mas também no Pessoa ortónimo de poemas simbolistas e quase místicos (alguns esotéricos e iniciáticos) e num Pessoa-Campos de poemas igualmente quase místicos como os Dois excertos de Odes, o Magnificat ou o «Afinal a melhor maneira de viajar é sentir»?E o Pessoa de Mensagem? – o do «Deus quer, o homem sonha, a obra nasce» , o do misticismo nacionalista corporizado no mito (que «é o nada que é tudo») de D.Sebastião, o «Encoberto», adivinhado por Bandarra ou António Vieira, o da «divina loucura», sagrado, como o Infante Santo ou o Infante D.Henrique, por Deus, para ser portador do Sonho construtor de Quintos Impérios ainda não concretizados?
De um desafio se tratava, pois, para mim, o de tentar encontrar pelo menos esboço de resposta para tantas interrogações. É desse esboço de resposta que trago, hoje e aqui, as linhas principais e as muitas interrogações que, certamente no final, vos ficarão.
Vejam-no apenas como esboço, como uma introdução ao problema.
Vou seguir de perto o que pude aprender na pouca bibliografia específica existente e, principalmente, em António Quadros , Fernando Pessoa-Vida, personalidade e génio (ed. D.Quixote, Lisboa,2ªed.,1984), em Dalila Pereira da Costa, O Esoterismo em Fernando Pessoa (ed.Lello & Irmão, Porto, 2ªed.,1978), em alguns capítulos de Teresa Rita Lopes in «Pessoa por conhecer»(Estampa, Lisboa, 1990) e nos estudos de Yvette Centeno, ligados igualmente às questões do esoterismo, hermetismo e iniciação na poesia de Pessoa.E também, naturalmente, da minha reflexão pessoal. E, principalmente ainda, na minha interrogação inacabada.
2. Algumas coordenadas para o conhecimento de Fernando Pessoa:
2.1 Fernando Pessoa foi baptizado e educado em criança dentro dos parâmetros
da religião católica; existe um documento dele, datado de 1907 (tinha o poeta 19 anos), dirigido ao pároco da freguesia em que fora baptizado, em que contesta o facto de o terem baptizado quando «ainda ente irracional», obrigando-o «a fazer parte de uma associação demasiado humana com as teorias da qual o seu raciocínio mais viril talvez não queira concordar»; no mesmo documento considerava a igreja católica «poderosa e estúpida, sustentando a velha hipótese d’um Deus criador, eminentemente estúpido e eminentemente mau»[1]
[1] documento publicado por Teresa Rita Lopes in pessoa por conhecer, ed.Estampa, Lisboa, 1990-2ºvolume, p.79.
2..2. Em 1915, em carta dirigida em 6 de dezembro a Mário de Sá Carneiro,
confessava- se em crise profunda, derivada de ter tido que traduzir várias obras de teosofia. Cito:
«Tive de traduzir livros teosóficos. Eu nada, absolutamente nada, conhecia do assunto. Agora, como é natural, conheço a essência do sistema. Abalou-me a um ponto que eu julgaria hoje impossível, tratando-se de qualquer sistema religioso. O carácter extraordinariamente vasto desta religião-filosofia; a noção de força, de domínio, de conhecimento superior e extrao-humano que ressumam as obras teosóficas, perturbaram-me muito. Cousa idêntica me acontecera há muito tempo com a leitura de um livro ingçês sobre Os Ritos e os Mistérios dos Rosa-Cruz. A possibilidade de que ali, na Teosofia, esteja a verdade real me “hante”.(-...)
E mais adiante: « Ora, se V.meditar que a teosofia é um sistema ultra-cristão — no sentido de conter os princípios cristãos elevados a um ponto onde se fundem não sei em que além-Deus e pensar no que há de fundamentalmente incompatível com o meu paganismo essen -
cial, V. terá o primeiro elemento grave que se acrescentou à minha crise. Se depois reparar em que a Teosofia, porque admite todas as religiões, tem um carácter inteiramente parecido com o do paganismo, que admite no seu panteão todos os deuses, V. terá o segundo elemento grave da minha crise de alma. A Teosofia apavora-me pelo seu mistério e pela sua grandeza ocultista, repugna-me pelo seu humanitarismo e apostolismo (...), atrai-me por se parecer tanto com um «paganismo transcendental (...) É o horror e a atracção do abismo realizados no além-alma...»
Convém esclarecer aqui que a teosofia, literalmente «sabedoria divina» ou «dos deuses» é uma teoria que se situa como síntese de filosofia, religião e ciência, apelando para a intuição e faculdades não racionais e declarando a identidade do Homem com a Realidade e o seu consequente poder de conhecer a Finalidade, a Meta, que se chama Deus.
Vários intelectuais europeus do tempo de Pessoa se deixaram tocar por esta teoria, reactivada sobretudo a partir da actividade de Helena Blavatsky, uma das fundadoras e principal expoente da Sociedade Teosófica em Nova Iorque , em 1875. Fernando Pessoa traduziu, entre outras obras teosóficas, A Voz do Silêncio, obra essencial de Blavatsky. No entanto, a teosofia vem de muito antes e, nomeadamente de Platão e Plotino, para não falar das diversas correntes místicas e do próprio idealismo alemão.
2.3. Também por essa altura, em célebre carta à tia Anica, confessa sentir-se com
características de mediunidade e desenvolve práticas de espiritismo, reveladoras, juntamente com o interesse pela teosofia, pelos Rosa-Cruzes e o seu gosto e prática da numerologia e da astrologia, o seu pendor para o oculto, que viria a aprofundar-se nos anos finais da sua vida.
2.4 Em 1935, ou seja, no último ano da sua vida, confessa-se, na já referida Nota
biográfica, no ponto Posição religiosa: «Cristão gnóstico, e portanto, inteiramente oposto a todas as igrejas organizadas, e sobretudo à Igreja de Roma. Fiel, por motivos que mais adiante estão implícitos, à Tradição Secreta do Cristianismo, que tem íntimas relações com a Tradição Secreta em Israel (a Santa Cabala) e com a essência oculta da Maçonaria» e «Iniciado, por comunicação directa de Mestre a Discípulo, nos três graus menores da (aparentemente extinta) Ordem Templária de Portugal»
Compreende-se a sua autodefinição como gnóstico, dado pretender ser a a gnose o conhecimento esotérico e perfeito da divindade, que se transmite por meio da tradição e mediante rituais de iniciação. [1] Tal iniciação tê-la-á conseguido o poeta não pela sua integração na Maçonaria ou noutras associações secretas e ocultistas, mas pela reflexão e estudo e pela experiência poética , que, segundo Jung « aflora de regiões profundas da alma, salutares e benéficas, preexistentes à segregação das consciências individuais, e que, a partir desse regaço colectivo, seguiram os seus passos dolorosos. Brota dessas regiões onde todos os seres vibram ainda, em uníssono, e onde consequentemente a sensibilidade e a acção do 9indivíduo valem para toda a humanidade.»[2]
2.5 Como última destas coordenadas, em carta do mesmo ano a Adolfo Casais
Monteiro, diz-se não mação e opina sobre o Ocultismo, dizendo «não acreditar na comunicação directa com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual, poderemos ir-nos comunicando com seres cada vez mais altos»; define também, na mesma carta, 3 caminhos para o Oculto, o mágico, o místico e o alquímico, considerando o último «o mais perfeito de todos, porque envolve uma transmutação da própria personalidade que a prepara».
Traçadas as coordenadas principais, a nível do pensamento religioso de Fernando
Pessoa, pondo, para já, de parte a longa teorização e defesa do Neopaganismo português, atentemos nalguns textos reveladores daquilo que podemos considerar ser o seu percurso poético /religioso, na busca do Conhecimento ou Gnose:
Por volta de 1912, tinha o poeta então 24 anos, e no mesmo ano em que publicava na «Águia» os seus primeiros artigos sobre a moderna poesia portuguesa, surge-nos um texto belíssimo intitulado «Prece» que passo a transcrever:
Prece:
«Senhor, que és o céu e a terra, e que és a vida e a morte! O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu! Tu és os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor és tu também. Onde nada está tu habitas e onde tudo estás - (o teu templo) - eis o teu corpo.
Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome.
Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faz com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai.
Ser, ideia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus...
[1] e nós a lembrarmo-nos de Vergílio Ferreira...
O 5º e último poema, de título de ressonância esotérica ( e surrealista) – Braço sem corpo brandindo um Gládio – «é o regresso à realidade quotidiana, lugar da dúvida, da interrogação, do espanto, da incapacidade de aferir, pela razão humana, aquilo que por instantes envolveu o ser inteiro, deixando atrás de si um sentimento de irrealidade»[1] — conclui assim o poema:
«Deus é um grande Intervalo,
Mas entre quê e quê?...
Entre o que digo e o que calo
Existo? Quem é que me vê?
Erro-me...»
— os sonetos XI e XIII, em que o Poeta se vê como emissário, simples executor de algo que lhe é ditado (por quem? – por oculta mão? , por um rei desconhecido?) de reminiscências notoriamente neoplatónicas
XINão sou eu quem descrevo. Eu sou a tela E oculta mão colora alguém em mim. Pus a alma no nexo de perdê-la E o meu princípio floresceu em Fim. Que importa o tédio que dentro em mim gela, E o leve Outono, e as galas, e o marfim, E a congruência da alma que se vela Com os sonhados pálios de cetim? Disperso... E a hora como um leque fecha-se... Minha alma é um arco tendo ao fundo o mar... O tédio? A mágoa? A vida? O sonho? Deixa- - se... E, abrindo as asas sobre Renovar, A erma sombra do voo começado Pestaneja no campo abandonado... | XIIIEmissário de um rei desconhecido Eu cumpro informes instruções de além, E as bruscas frases que aos meus lábios vêm Soam-me a um outro e anómalo sentido... Inconscientemente me divido Entre mim e a missão que o meu ser tem, E a glória do meu Rei dá-me o desdém Por este humano povo entre quem lido... Não sei se existe o Rei que me mandouMinha missão será eu a esquecer, Meu orgulho o deserto em que em mim estou... Mas há! Eu sinto-me altas tradições De antes de tempo e espaço e vida e ser... Já viram Deus as minhas sensações... |
O último poema da série termina com «E Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo»
Vejamos:
Como uma voz de fonte que cessasse (E uns para os outros nossos vãos olhares Se admiraram), para além dos meus palmares De sonho, a voz que do meu tédio nasce Parou... Apareceu já sem disfarce De música longínqua, asas nos ares, O mistério silente como os mares, Quando morreu o vento e a calma pasce... | A paisagem longínqua só existePara haver nela um silêncio em descida Para o mistério, silêncio a que a hora assiste... E, perto ou longe, grande lago mudo, O mundo, o informe mundo onde há a vida... E Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo... |
Pessoa parece reconhecer em Deus a meta – em carta a Armando Cortes Rodrigues, datada de 19.1.1915, escrevia: «você é, como eu, fundamentalmente um espírito religioso» e mais adiante, referindo-se à solidão de sentir alguém que se «adiantou de mais aos companheiros de viagem » a viagem que, segundo diz, acha«tão grave» porque é uma viagem «entre almas e estrelas, pela Floresta dos Pavores...e Deus, fim da estrada infinita, à espera no silêncio da Sua grandeza...»
Podemos então talvez concluir como Quadros e Dalila Pereira da Costa, que entre 1912 e 1915 o Poeta, reconhecendo-se explicitamente como «espírito religioso» terá tido uma experiência de conhecimento contemplativo, quase de contacto místico, não racional, portanto, com o grande Intervalo, com Deus. Só bastante mais tarde, a partir de 1932, tal experiência viria a repetir-se, como veremos.
1. A busca da unidade perdida: o neopaganismo / Mestre Caeiro
Nos anos seguintes, foi a vez da uma busca de respostas outras ao problema: —
sou múltiplo, sou plural como o Universo.- Como reencontrar a Unidade perdida? Como ultrapassar o conflito /divisão entre o que sou e o que me sonho, entre o que sonho e o que faço, entre «a lealdade que devo /À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora/E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro»?[1]
Penso que esta terá sido porventura a questão fundamental de Pessoa e dos seus «desassossegos» existenciais...
É este o período fecundo das tentativas neopagãs (e de toda a teoria do neopaganismo português – uma «Igreja» de que se fazem eco e «evangelistas» o filósofo António Mora, mas também Ricardo Reis e o próprio Pessoa).Nessa nova Igreja ,[2] Cristo é apenas mais um deus no panteão e como tal aceite por Reis; o que é intolerável é que os cristãos o afirmem como único; se a natureza é plural, como conceber um panteão que não o seja?. Cristo, a existir, será o Deus- Criança, a «Criança Nova», a «Criança eterna» do Poema VIII de O Guardador de Rebanhos de Caeiro (ele próprio, o Mestre, o que «não era pagão, era o paganismo», segundo o discípulo porventura mais amado e mais rebelde, Campos) – a criança surgida em sonho, fugida do Céu e das roupagens míticas de que o revestiram, e vindo morar na casa do Outeiro /«adormecendo» na alma do Poeta, não sem antes o ter ensinado a ver — e se ter comportado como criança:
«Esta é a história do meu Menino Jesus – conclui o poeta - Por que razão que se perceba/Não há-de ser ela mais verdadeira/Que tudo quanto os filósofos pensam /E tudo quanto as religiões ensinam?»
O mesmo Menino Jesus-Caeiro, que afirma não acreditar em Deus.«Não acredito em Deus porque nunca o vi./Se ele quisesse que eu acreditasse nele,/Sem dúvida que viria falar comigo /E entraria pela minha porta dentro /Dizendo-me, Aqui estou ![3]
Uma religião, afinal, panteísta, a deste Mestre Caeiro, que parece recusar a visão do transcendente, mas absolutiza o real como se Deus fosse tão somente o real, as coisas da natureza. Um pouco como nas filosofias orientais, mas, ainda que o não parecendo, muito próxima da visão de S. Francisco no Cântico das Criaturas....Dando a sua resposta, afinal – a da sua completa a perfeita comunhão com o real, recusando conhecê-lo pelo pensamento (afinal: pensar é não compreender, pensar é estar doente dos olhos, pensar incomoda como andar à chuva...). Poderemos, ainda aqui, falar de misticismo de outro tipo – o misticismo panteísta de fusão com a natureza; por ele Sujeito e Objecto fundem-se e encontram a Unidade.
Mas Caeiro morreu cedo, como, de certo modo, inviável era «aprender a desaprender», recuperar a inocência da criança que vê tudo como se fosse pela primeira vez ou da ceifeira e da sua alegre inconsciência de não saber como a «ciência pesa tanto e a vida [2] esta equiparação do neopaganismo a nova Igreja com mestre, evangelistas e discípulos é colhida no livro já cit. de Teresa Rita Lopes
[3] em espécie de paráfrase ao Jesus de O Suave Milagre, de Eça?
é tão breve!» e por isso «canta sem razão»[1] — e com a sua morte prematura morreu também um pouco a teoria/igreja neopagã:
— Mora, o assumidamente filósofo, reduz-se ao silêncio;
— Reis assume o seu epicurismo triste, o «colhe o dia porque és ele», o «abdica e sê rei de ti próprio», tristemente, ou antes, desconsoladamente, dando conselhos, a meu ver pouco convictos, refugiando-se num cepticismo de escola («Assim talvez os deuses / Para si o não sejam, / E só de serem do que nós maiores / Tirem o serem deuses para nós // Seja qual for o certo, / Mesmo para com esses / Que cremos serem deuses, não sejamos / Inteiros numa fé talvez sem causa»)[2] ; digamos que ele é um «pagão triste da decadência», como a última imagem que quer conservar de Lídia, sua apaixonada virtual.
— Quanto a Pessoa, o ortónimo, aquele de quem Campos diz que «seria um pagão se não fosse um novelo embrulhado para o lado de dentro»[3] atingirá, de certo modo, confundindo - se com Campos, na parte final da vida, o êxtase que entrevira em 1912 a 1915;
— Campos será sempre, e passada a fúria sensacionista do querer ser toda a gente e toda a parte[4], o mais desassossegado de todos, encontrando a paz e a verdade possíveis apenas no sonho de epopeias marítimas triunfais sem sair nunca do «cais deserto», imagem e sombra do Cais absoluto e arquetípico , de reminiscência ou anamnese platónica[5] - atingirá, porém, e talvez em resposta ao seu desassossego e à sua busca, finalmente, e de novo, a alegria de encontrar Deus, ou em todo o caso, o Sagrado e a plenitude em textos como Magnificat e no Sursum Corda! de Afinal a melhor maneira de viajar é sentir...
Como diz Dalila Pereira da Costa, «o paganismo como idade da humanidade, forma e
visão do cosmos e apreensão do mundo, ser-lhe-ia revelado e dado a participar por directa experiência pessoal, em instantes que, abolindo milénios de afastamento, tal uma prodigiosa anamnese, o poeta consignou em Dois excertos de Odes, Passagem das Horas, Afinal a melhor maneira de viajar é sentir [6]... Aí, pela sua intuição poética, pelo seu dom de visionário, ele teria o poder, tal como Holderlin, de realizar uma ressurreição vivida dessa idade, em toda a sua verdadeira alma, e dela participar. Aí o cosmos surgir-lhe-ia em toda a sua antiga e eterna sacralidade.»
É esse, a seu ver, o verdadeiro sentido do neopaganismo de Pessoa.Com efeito, o sentido do mistério perpassa nesses poemas, onde é visível, como nos poemas orrtónimos «Silvos ou gnomos tocam?» ou «Passos tardam na relva»,[7] em que pequenos seres míticos são pressentidos.
[2] ode Meu gesto que destrói
[3] in Notas para a recordação do meu mestre Caeiro
[4] Ode Triunfal
[5] Ode Marítima
[6] todos poemas de Campos, note-se...
[7] poemas datados de 1914 e de 1933 respectivamente, o que parece provar a persistência do sentido do Mistério, do sagrado
1. « Caminhos para o oculto»:
Chegamos, neste ponto, ao tratamento daquilo que Quadros designa de caminhos para o oculto.
Segundo ele, Pessoa experimentou ou tentou, melhor dizendo, três caminhos de aproximação do Mistério, tantas vezes pressentido ou entrevisto. Seriam eles o caminho gnósico da percepção e visão supranormal, da imaginação, do sonho, da mediunidade, da reminiscência anamnésica platónica, da permeabilidade ao inconsciente colectivo ou arcaico, ou das iluminações [1], inspirações e contactos de ordem mística. A segunda via, segundo Quadros, seria o caminho sófico – reflexão metafísica associada à cultura erudita; depois do clarividente, o pensador, o intelectual, o erudito, o que raciocina exaustivamente. Finalmente, a via ou caminho iniciático, presente em poemas esotéricos conhecidos como Na sombra do Monte Abiegno, Do Vale montanha`,A Múmia, Iniciação, Eros Psique, No túmulo de Christian Rossencreutz. Estes poemas têm sido exaustivamente analisados, quer por Dalila Pereira da Costa, quer por Yvette Centeno, e remeto para tais estudos aprofundados os meus queridos e pacientes ouvintes.
Na sombra do Monte Abiegno Repousei de meditar. Vi no alto o alto Castelo Onde sonhei de chegar. Mas repousei de pensar Na sombra do Monte Abiegno. Quando fora amor ou vida, Atrás de mim o deixei, Quando fora desejá-los, Porque esqueci não lembrei. À sombra do Monte Abiegno Repousei porque abdiquei. Talvez um dia, mais forte Da força ou da abdicação, Tentarei o alto caminho Por onde ao Castelo vão. Na sombra do Monte Abiegno Por ora repouso, e não. Quem pode sentir descanso Com o Castelo a chamar? Está no alto, sem caminho Senão o que há por achar. Na sombra do Monte Abiegno Meu sonho é de o encontrar. Mas por ora estou dormindo, Porque é sono o não saber. Olho o Castelo de longe, Mas não olho o meu querer. Da sombra do Monte Abiegno Que me virá desprender? | Do vale à montanha, Da montanha ao monte, Cavalo de sombra, Cavaleiro monge, Por casas, por prados, Por quinta e por fonte, Caminhais aliados. Do vale à montanha, Da montanha ao monte, Cavalo de sombra, Cavaleiro monge, Por penhascos pretos, Atrás e defronte, Caminhais secretos. Do vale à montanha, Da montanha ao monte, Cavalo de sombra, Cavaleiro monge, Por plainos desertos Sem ter horizontes, Caminhais libertos. Do vale à montanha, Da montanha ao monte, Cavalo de sombra, Cavaleiro monge, Por ínvios caminhos, Por rios sem ponte, Caminhais sozinhos. |
Na sombra do Monte Abiegno: — o Monte Abiegno é a Montanha que une os planos terrestre e celeste, desafio ao homem que aspira pelo Absoluto. A imagem do cavaleiro-monge, como a do Castelo, ambas de ressonâncias medievais, é a do cavaleiro solitário que busca «por ínvios caminhos» o seu Graal – a Verdade [2]
Mais importante ainda é o conjunto de poemas A Múmia, também cronologicamente o primeiro destes poemas esotéricos. Segundo Yvette Centeno, assistimos nesta poesia cifrada «a um percurso espiritual, iniciático (em que se confirma a morte da alma) e a uma revelação. O poeta desce progressivamente dentro de si mesmo, separa-se de toda a realidade material e espiritual, fica reduzido à própria espinha, ao osso, à pura essência; e obtém no fim a revelação sobre a qual nada diz...»Tal percurso «é pontuado por uma absorção no Inconsciente, pela constatação da morte de Anima e pela depuração do Eu até à fixação na própria espinha, terminando de chofre com a enigmática substantivação «As espadas». As espadas equivaleria ao fogo dos filósofos, sendo também um atributo dos iniciados templários e rosa-cruzes, o que leva Centeno a interrogar-se: «Que concluir daqui? Que a revelação das espadas equivale à revelação simultânea, à «abertura, aqui» da porta do Entendimento e da beleza? Experiência que coroa a realização do homem, do poeta.»
A experiência alquímica visa, segundo Mirciade Eliade, «transmutar o homem; pela iniciação, o místico mudava de regime ontológico (fazia-se imortal). A transmutação, o opus magnum, que conduzia à pedra filosofal. obtém-se fazendo passar a matéria por 4 graus ou fases, entre as quais a nigredo e putrefactio, ou morte iniciática (....).»
Os poemas mais claramente iniciáticos de Pessoa são os já referidos «Iniciação», «No túmulo de Christian Rossencreutz» e ainda o de certo modo enigmático «Gomes Leal».Detenhamo-nos um pouco mais sobre o primeiro:
Iniciação
Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.
......
O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.
Vem a noite, que é a morte
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.
Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa.
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.
Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.
Por fim, na funda caverna,
Os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus iguais.
......
A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não estás morto, entre ciprestes.
......
Neófito, não há morte.
Só despindo-se, pela desnudação, o poeta encontra a verdadeira vida/unidade: por isso, «neófito, não há morte».Para o conseguir é preciso, porém atingir o fundo do poço, da caverna onde a verdadeira vida e a verdadeira verdade, passe a redundância, se encontram.
O corpo nada mais é que invólucro pesado e obstáculo de que é necessário despojar-se.
Como escreve Dalila Pereira da Costa:
«. Aqui o neófito renasce, depurado para outra vida, nessa caverna regeneradora, centro das forças do mundo e do eu, da energia primeira: sua matriz. Novo ciclo de existência se lhe abre: a dos deuses, «pois aí vês que são teus iguais». Aqui se termina a transmutação suprema, tal outra operação alquímica, que é a morte. Por esses estados sucessivos se ultrapassou, ou largou, a natureza humana e se adquiriu a natureza celeste, matéria última, incorruptível e eterna.
Iniciação poderá ser visto semelhantemente como uma purificação, numa alquimia do corpo humano. Por essa destruição, combustão de todos os elementos acidentais, exteriores, agarrados ao seu núcleo, central e incorruptível, fazer que este por fim, liberto e único, brilhe na caverna, a última etapa do trabalho interior: como a «matéria-prima». Nesse cadilho alquímico, ela será a obtenção final do diamante incorrupto, ou «Lapis Philosophorum». O ser primordial e eterno, o que um dia caiu do infinito, e que aqui sobre a terra, é o proscrito. Fechando assim agora o círculo, este poema, como «exitus», será o segundo e complementar movimento desse outro (como linha ascensional numa mesma onda), que surgiu na sua juventude, e em semelhante ambiente de mistério iniciático: os Passos da Cruz»
Da iniciação resulta também a desgraça, a tristeza e a solidão, como parece entrever- - se no poema Por que Ó Sagrado (datado de 1932):
Por que, ó Sagrado, sobre a minha vida
Derramaste o teu verbo?
Por que há- de a minha partida
A coroa de espinhos da verdade
Antes eu era sábio sem cuidados,
Ouvia a tarde finda, entrar o gado
E o campo era solene e primitivo
Hoje no meu ser sou o escravo
Só no meu ser tenho de a ter o travo,
Estou exilado aqui e morto vivo.
Maldito o dia em que pedi a ciência!
Mais maldito o que a deu, porque me a deste!
Que é feito dessa minha inconsciência
Que a consciência, como um traje, veste?
Hoje sei quase tudo e fiquei triste...[1]
Sei a verdade, enfim, do Ser que existe,
Prouvera a Deus que eu não soubesse tanto!
MAGNIFICAT (7-11-1933)
Quando é que passará esta noite interna, o universo,
E eu, a minha alma, terei o meu dia?
Quando é que despertarei de estar acordado?
Não sei. O sol brilha alto,
Impossível de fitar.
As estrelas pestanejam frio,
Impossíveis de contar.
O coração pulsa alheio,
Impossível de escutar.
Quando é que passará este drama sem teatro,
Ou este teatro sem drama,
E recolherei a casa?
Onde? Como? Quando?
Gato que me fitas com olhos de vida, quem tens lá no fundo?
É esse! É esse!
Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei;
E então será dia.
Sorri, dormindo, minha alma!
Sorri, minha alma, será dia!
Trata-se, na opinião de Quadros, de «um cântico de assunção e êxtase», «momento de apaziguamento – consolado, repousado, gratificado. Porque, contemplado em êxtase, Esse lho terá concedido.» .
Confirma-se, assim, a opinião já referida de Dalila Pereira da Costa de que:
«Deus em Pessoa não é um conceito, uma noção teórica nem um ideal abstracto. Sua ideia de deus não é racional. Ele é uma realidade conhecida por experiência directa. Uma realidade eminentemente viva, como o Deus vivo da Bíblia, o mesmo que todos os grandes espirituais conheceram.(...) Não procuremos tão pouco no seu pensamento um Deus de feição moral. O seu deus é o dos contemplativos, conhecido e revelado no amor e na liberdade. A salvação aqui não é dada através dos méritos e das obras próprias, mas pela união sagrada com Deus. É nela que estará o homem justificado.»
Vemo-lo também lendo, em vésperas de Natal de 1934, e ainda com Álvaro de Campos, a 1ª Epístola aos Coríntios:
Ali não havia electricidade.
Por isso foi à luz de uma vela,mortiça
Que li, inserto na cama,
O que estava à mão para ler —
A Bíblia, em português (coisa curiosa), feita para protestantes.
E reli a «Primeira Epístola aos Coríntios».
Em torno de mim o sossego excessivo de noite de província
Fazia um grande barulho ao contrário,
Dava-me uma tendência do choro para a desolação.
A «Primeira Epístola aos Coríntios»...
Relia-a à luz de uma vela subitamente antiquíssima,
E um grande mar de emoção ouvia-se dentro de mim...
Sou nada...
Sou uma ficção...
Que ando eu a querer de mim ou de tudo neste mundo?
«Se eu não tivesse a caridade.»
E a soberana luz manda, e do alto dos séculos,
A grande mensagem com que a alma é livre...
«Se eu não tivesse a caridade..»
Meu Deus, e eu que não tenho a caridade!---
[1] Em Antero:«Conheci a Beleza que não morre /E fiquei triste»
1. As questões que ficam:
E aqui está, como neste sensacionismo assumido se retoma e se esclarece, ganhando
nova luz, o «Já viram Deus as minhas sensações». de Passos da Cruz.
Concluiríamos assim que também (ou sobretudo?) a sensação é força propulsora da caminhada do cavaleiro-monge em direcção ao Monte Abiegno ou a Deus, a Grande Ogiva?
Que Caeiro – o sensacionista dos sensacionistas, o porventura talvez mais whitmaniano (indo para além do próprio Whitman, de resto) – seria também uma via para Deus, para o Absoluto, para a fundamental unidade?
São perguntas que ficam. Eu nada sei – ou quase nada. Apenas me interrogo – e interrogo; como Pessoa me sinto – ou gostaria de me sentir e ser – indisciplinadora de almas, levando-as a interrogarem-se.
Em todo o caso, e como esboço de uma conclusão, sempre provisória, reforço, parece-- me poder concordar com a opinião expressa por Murillo Nunes de Azevedo, um teósofo brasileiro, em texto intitulado: Fernando Pessoa Teósofo:[1]
Peço desculpa pela extensão do meu texto – era, porém, difícil fazê-lo mais breve.
É que só é capaz de ser sintético quem domina muitíssimo bem e vê claramente um problema. O que não é, decididamente, e por enquanto, o meu caso.
Para além de tudo o mais, dizia Camões, dirigindo-se à Canção: «E se acaso / te culparem de larga e de pesada, «Não pode ser – lhe dize - limitada / a água do mar em tão pequeno vaso »...
Termino como comecei, com referência ao homem de todos os desassossegos, Bernardo Soares, relembrando as suas palavras desconsoladas:
«Pertenço a uma geração que herdou a descrença na fé cristã e que criou em si uma descrença em todas as outras fés. Os nossos pais tinham ainda o impulso credor, que transferiam do cristianismo para outras formas de ilusão. Uns eram entusiastas da igualdade social, outros eram enamorados só da beleza, outros tinham a fé na ciência e nos seus proveitos, e havia outros que, mais cristãos ainda iam buscar a Orientes e Ocidentes outras formas religiosas, com que entretivessem a consciência, sem elas oca, de meramente viver.
Tudo isso nós perdemos, de todas essas consolações nascemos órfãos. »
Leiria, Portugal
*Amélia Pinto Pais
[1] dado a conhecer pela Internet (www.cfh.ufsc.br/~magno/teosofiaepessoa.htm)
[2] nós acrescentaríamos com Jung e Novalis: e aos poetas
[3] recordemos a célebre carta sobre a origem dos heterónimos, de 1935.»Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 fde Março de 1914 – acrequei-me de uma cómoda alta, e tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tal poemas afio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida e nunca poedrei ter outro assim.(...)
[Amélia Pais, portuguesa, vivendo em Leiria. Professora e autora de livros e artigos -ensaios literários e de divulgação de autores portugueses para adultos e crianças(um dos quais-Fernando Pessoa, O menino da sua Mãe, já publicado em Junho de 2009 no Brasil pela Companhia das Letras e outro-Padre António Vieira, o Imperador da Língua Portuguesa,com publicação prevista para Junho de 2010 pela mesma editora brasileira. É também autora de uma História da Literatura Portuguesa e de livros de inicação sobre autores portigueses destinados a crianças.
Esporadicamente escreveu alguns(poucos) poemas e, por isso, não se considera propriamente poeta .]
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