domingo, julho 04, 2010

MULHERES DA BELLE-ÉPOQUE E SUAS PARCERIAS TEXTUAIS LYRIO-LÍRICAS


Leila Míccolis*
                                                                                        
          Em geral associamos o período da belle époque apenas com sofisticação e glamouralização da vida, que se pautava no modelo europeu, especialmente o de Paris, a “Capital da Luz”, o berço da cultura. A França era o referencial da elite intelectual brasileira. Víamos o país através do olhar forâneo, a ponto de João do Rio  indagar provocativamente no título de uma crônica, publicada em 11/8/1908 na Gazeta de Notícias: “Quando o Brasileiro Descobrirá o Brasil?”. Para nos restringirmos a um único autor nosso,  Bilac quase todos os anos viajava para a Europa. Ele pertencia a uma geração de escritores que se ufanava de possuir duas pátrias: a pátria do nascimento, dos laços afetivos, e a pátria do espírito, da inteligência e da cultura, que era a França” (JORGE, 1992, p. 267).
          Em meio a esta “Paris Tropical” a que o Rio de Janeiro se transformou no governo de Rodrigues Alves (15/11/1902 - 15/11/1906) e sob a administração do Prefeito Pereira Passos (que contou com Quintino Bocaiúva e Paulo de Frontin para reurbanizar o cais e o centro da cidade da capital federal), esquecemos de que este período foi marcado também por muitos descontentamentos e que certas mudanças vieram acompanhadas de grandes tumultos, como a Revolta da Vacina, que se opunha à lei de 31 de outubro de 1904 que estipulava a obrigatoriedade da vacinação contra a febre amarela e a varíola, e os métodos drásticos para fazer cumprir a lei, utilizados por Oswaldo Cruz. Podemos situar as contribuições das mulheres, no começo do século XX, dentro deste conjunto de mudanças de base.
         Opostas aos dândis, que brilharam por sua teatralidade explícita e ostensiva, as mulheres à primeira vista pareceram apagadas, sem impacto. Achamos importante tocar, mesmo en passant, nesta conexão às avessas, neste avessismo, uma vez que os próprios dândis tinham verdadeira ojeriza à mulher-senso-comum – lembremo-nos do texto de BAUDELAIRE (1995:526), ou mesmo de Rimbaud (CLARET, 1996, p.110-111) sobre as mulheres, criticando-as por serem por demais reais, “naturais”, terra-a-terra e pouco inteligentes, já que mulher inteligente, para ele, tinha que ser “diferente”, um ser de exceção. A imagem de femme fatal, com “as angulações de uma beleza perversa, de um encanto contaminador, cujo surto motiva espasmos de prazer e terror” (BOUÇAS, 2002, p.141-142), não podia estar mais longe da realidade das escritoras da belle époque brasileira, mulheres totalmente comuns, todas elas “do lar”. No entanto, se fizermos um zoon aproximativo, percebemos que elas construíram, à época, um grande teatro de máscaras também, disfarçando suas estratégias combativas sob gestos serenos e sorrisos doces.
          Acusam-nas de conservadoras. Porém, só na pele de modelos exemplares, elas podiam ser ouvidas e respeitadas pela sociedade de então. Deve-se à má-interpretação de suas falas suaves e discretas, a pouca valorização de suas vozes pela crítica brasileira. Neste sentido, ironicamente, suas cintilações muitas vezes foram invisíveis a olhos nus, configurando-se em uma espécie de fulguração bruta, sem lapidação, um brilho oculto, portanto   “maçanetas de ouro maciço, mas oxidadas e desbotadas, para escondê-las”, bem a maneira de des Esseintes (SALGADO: 2007, p.54).
          Esta invisibilidade acontece até hoje. Adriana Braga, da UNISINOS – Universidade do Vale dos Sinos, no Rio Grande do Sul, examinando a imprensa feminina no Brasil do início do século passado, afirma:
 (...) Moda e literatura compunham o par principal que sustentava as publicações femininas brasileiras. Um eixo de sustentação que colaborava com a imagem doméstica da mulher, conforme destacado por Buitoni (1990:41), que considera os veículos conservadores nesse ponto. Por alguns títulos da época, O Lírio, A Violeta, A Borboleta, O Beija-Flor, A Esmeralda, A Grinalda, O Espelho pode-se inferir como a mulher era vista pela sociedade desse tempo (BRAGA:2003).
          Discordamos frontalmente deste reflexo do imaginário da mulher aliado, somente, ao sentido mais óbvio dos títulos das revistas da época. Acreditamos que esses nomes funcionavam mais como fachadas, camuflando verdadeiras barricadas por trás deles, e mascarando suas intenções dentro de um bem montado teatro de máscaras – inclusive muitas autoras escreviam sobre pseudônimos e heterônimos, seus alter egos. Dependendo da revista, as receitas de bolo, os conselhos de etiqueta e as sugestões para agradar os maridos podem muito bem ser percebidos como elementos deste teatrum mundi em que todo ser oprimido ou grupo estigmatizado atua, consciente ou inconscientemente.
          Procedamos ao exame, por exemplo, do título da publicação que é tema central deste nosso ensaio, e que está na lista das revistas acima citadas por Braga: O Lyrio. Se à primeira vista, ele aparenta ser constituído apenas de um romantismo piegas e simplório, logo nos deparamos com vasta e intrincada rede de sentidos nele contida: sendo uma planta do lodo, em muitas civilizações antigas o lírio era associado à magia, por suas propriedades alucinógenas (o que nos lembra os famosos paraísos artificiais dos decadentistas, com seus de-lírios...). Na Grécia, encontram-se lírios pintados em vários palácios ao lado de Hera, deusa da lua, magicamente poderosa principalmente em sua fase de “lua negra”; e, devido à sua “palidez”, o lírio, em algumas regiões era flor ligada também à morte, tema recorrente nos decadentistas e simbolistas, que tanto prezavam os aspectos místicos e os temas espirituais. Mais: a flor de lis é o símbolo da monarquia francesa. Em 1919, André Gide (1966:93-94) utiliza-se do lírio para questionar a sociedade francesa de seu tempo, quando, em La Symphonie Pastorale, trava um diálogo com Gertrudes, uma jovem cega, comentando que não há mais lírios no campo, porque os homens os destruíram. E, quando ela afirma que o ser humano, com um pouco de confiança, pode recomeçar a vê-los, seu interlocutor desloca habilmente a reflexão para o âmbito estético, concluindo que eles são tão belos quanto ela os vê. Ou seja: a noção conceitual de beleza reside na percepção do observador, em sua contemplação, independentemente dos lírios serem reais, imaginados, ou imaginários. Diante de tantas e tão diferentes interpretações e sentidos, entender o lírio apenas como um delicado símbolo de pureza, é rejeitar as contradições, mistérios e paradoxos a ele inerente, entre os quais estão a lama que o nutre, o misticismo, o ocultismo, os delírios, a palidez, e a morte.
           O Lyrio era uma publicação de teor exclusivamente literário, o que o coloca em um patamar especial dentro da imprensa feminina da época. Havia escritoras feministas, e até mulheres que cursaram uma faculdade (de medicina, por exemplo). Porém a maior parte das escritoras brasileiras da belle époque, quando tinha uma profissão remunerada, era constituída por professoras, às quais era proibido tudo, desde os prazeres mais ingênuos até casar-se. Para termos uma pálida idéia da total repressão ao corpo feminino, em Barcelona, cidade de um país de primeiro mundo, o contrato de professores entre a instituição de ensino e a professora contratada, em 1923, exigia à senhorita, sob pena de anulação do contrato profissional:
1. Não se casar. 2. Não andar na companhia de homens. 3; Ficar em casa entre às 8 h. da noite e às 6 da manhã, a não ser que seja para atender a uma função escolar. 4. Não passear pelas sorveterias do centro da cidade. 5. Não abandonar a cidade sob  nenhum pretexto, nem permissão do presidente do Conselho de Delegados; 6. Não fumar cigarros. 7. Não beber cerveja, vinho ou uísque; 8. Não viajar em carruagem ou automóvel com qualquer homem, exceto seu irmão ou seu pai. 9. Não vestir roupa de cores brilhantes. 10. Não prender os cabelos. 11. Usar, pelo menos, duas anáguas. 12. Não usar vestidos que fiquem a mais de cinco centímetros acima dos tornozelos. 13. Manter a sala limpa; a. varrer o chão da sala de aula pelo menos uma vez por dia; b. lavar o chão da sala de aula, pelo menos, uma vez por semana, com água quente e sabão; c. limpar o quadro-negro, pelo menos, uma vez por dia; d. acender o aquecimento às 7 h., de maneira que o cômodo esteja quente às 8h, quando as crianças chegam. 14. Não usar pó de arroz, não se maquilar e nem pintar os lábios (extraído e traduzido de APPLE, Michel W.).

Se assim era, na Espanha, em 1923, imaginemos no Brasil, em 1900 (o Instituto de Educação, na época denominado de Escola Normal da Corte do Brasil foi fundado em no 6 de março de 1880, apenas nove anos antes da Proclamação da República, e instalado em 5 de abril do mesmo ano, com a presença do Imperador a rainha Cristina e inúmeras personalidades). Desde o Decreto 7247 de 19 de abril de 1879, em seu artigo 24, a mulher tinha “a liberdade e o direito de a freqüentar os cursos das Faculdades e obter título acadêmico.'' Porém esta Reforma Leôncio de Carvalho, promulgada pelo Imperador Dom Pedro II, não lhes dava o direito ao exercício da profissão. Até quase que os meados do século XX a única profissão reconhecida como nobre reservada à mulher – ainda mais de classe média baixa - era o magistério, prolongamento de suas funções maternas, embora, tornar-se professora, significava – como lemos acima – ser invadida em sua privacidade, e também acumular as funções de empregada doméstica dentro da escola que a contratava, sendo-lhe, ainda, vetados quaisquer tipos de “divertimentos mundanos”, mesmo os mais pueris, em nome da honra, da moralidade e do decoro.

Com um corpo passivo, totalmente reprimido e castrado, também pela moda da época – espartilhos, anquinhas, chapéus sob o calor de um país tropical, – restritas a cumprir fielmente, até a morte, o dito popular “mulher perdida, gosta; mulher direita, deixa”, é fácil imaginar que as mulheres “sérias” encontrassem na literatura, um oásis. Nele, não podiam propriamente ser o que quisessem, pois até neste campo a ficção podia ser entendida como projeção de sua imagem pessoal, porém pelo menos conseguiam libertar-se por momentos das algemas do cotidiano.
Foram publicados vinte números de O Lyrio, que circulou durante o período de janeiro de 1902 a 1904, em Recife, Pernambuco. Amélia Beviláqua era a redatora-chefe. Nascida no sertão do Piauí, Jerumenha, em 1861, foi esposa do jurista Clóvis Beviláqua, autor do projeto do Código Civil Brasileiro em 1889, promulgado em 1916. Até em sua vida privada, o casamento com Clóvis ilustra os padrões da sociedade patriarcal da época: pela livre vontade do marido, ele teria escolhido e desposado a irmã mais nova de Amélia, de quem, inclusive, já era noivo (MENDES, 2004, p.57); mas seu futuro sogro, o desembargador José Manuel de Freitas, seguindo a tradição familiar da época, decreta que a filha mais velha deveria casar-se em primeiro lugar, e concede somente a mão de Amélia; e as núpcias realizam-se em 1883. Cremos ser esta uma expressiva ilustração das ressonâncias atmosféricas da imagem finissecular em relação às mulheres. Neste caso específico, porém, o casamento favoreceu Amélia, que aprendeu francês e inglês – idiomas que falava fluentemente – e dedicou-se às Letras.
O Lyrio foi uma publicação literária tão importante no panorama brasileiro que Silvio Meira a ela dirigiu-se nos seguintes termos: “Essa revista, digna da melhor apreciação no quadro da evolução da literatura brasileira, abriu espaço às mulheres intelectuais, e constituía, sem dúvida, uma novidade nos meios sociais e culturais pernambucanos” (MEIRA, 1990, p.454). Em 1902, a revista já apresentava fotos de pessoas e lugares, grande inovação, pois, no que tange a publicações femininas, a primeira a publicar imagens foi a Revista Feminina no Rio de Janeiro, no ano anterior. Fora da capital federal, dificilmente uma publicação, ainda mais produzida por mulheres, no Nordeste, podia sonhar com tal requinte; porém, graças a este “luxo”, a Historiografia da Literatura Brasileira beneficiou-se muito com o resgate deste preciosíssimo acervo iconográfico.
O Lyrio também trazia assinaturas (2$000 por trimestre e 4$000 por semestre) e anúncios, em geral de página inteira, no final de cada edição mensal – de consultórios médicos, e odontológicos, além de produtos farmacêuticos,  enormes ousadias, em um tempo em que
“A sobrevivência através do trabalho intelectual para a mulher era vedada. Em 1850, começam a aparecer, com freqüência, versos de mulheres, que publicavam com a ressalva de não auferir nenhuma remuneração para o seu trabalho. Esta situação era explicitada na capa ou no prefácio do livro Echos da minh’alma, de Adélia Fonseca, editado em 1866”  (MENDES, 2004, p.44).

A República traíra os ideais das mulheres. Para permanecemos em três únicos exemplos, citamos, primeiramente o de Maria Augusta Meira de Vasconcellos Freire – uma das fundadoras de O Lyrio –, que obtém o título de bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, pela Faculdade de Direito do Recife (com dezessete anos era a terceira mulher a obter este título no país), e, estando de posse do seu diploma, pensa em exercer a profissão para a qual se preparara, mas não consegue, pelo fato de ser mulher. Durante meses, ela mantém polêmicas pelos jornais, com ex-colegas ou antigos professores, enfrentando comentários jocosos, irônicos que a ridicularizam, ou ataques frontais. Chega a escrever ao marechal Deodoro da Fonseca, instância máxima do País, pedindo que se desse à questão "uma resolução definitiva". O documento é enviado à instituição que seria hoje a Ordem dos Advogados, e depois de muitas discussões, a resposta definitiva que lhe vem é a de que o Direito brasileiro inspira-se no Direito Romano; e como em Roma as mulheres não exerciam a advocacia, aqui também não... O segundo exemplo diz respeito ao parecer do governo contrário à reivindicação da Drª Isabel de Souza Mota, cirurgiã-dentista, que, em 1885, requereu, em vão, seu alistamento eleitoral na sua cidade natal (São José do Norte/RS), com base na Lei Saraiva (09/01/1881), que garantia o direito de voto ao portador de títulos científicos. Por fim, já em 1930, a própria Amélia é impedida de concorrer a uma vaga na Academia Brasileira de Letras, pelo fato de ser mulher. Essas exclusões, entre diversas outras, serviram para provar que as mulheres continuavam alijadas do espaço político, sem direito a voto, ao exercício das profissões (a não ser professoras, caso se submetessem a todas as regras coercitivas antes enumeradas) e confinadas aos espaços privados.
 No interior do Brasil, a situação era ainda mais trágica, sendo o trabalho para a mulher inimaginável. “Poucas mulheres se aventuraram a escrever e publicar, em virtude das restrições do modelo patriarcal” (MENDES, 2004, p.136). O único lugar onde a mulher podia atuar com soberania era dentro do lar, na esfera doméstica. Assim, invadir o espaço público e ainda custear uma revista de mulheres com assinaturas e anúncios era, na época, um ato de extrema coragem, raríssimo, até porque, em 1902, frise-se, “poucas são as escritoras admitidas no cânone literário brasileiro. Todas as que produzem literatura visando a um público, ao “espaço público” e não ao privado, ‘forçam’ um lugar para a mulher num cânone marcadamente masculino” (MENDES, 2004, p.47).      
          Entretanto, O Lyrio tinha formas múltiplas de atuação, inclusive também se fazia presente nos saraus lítero-musicais, outro espaço privado em que a mulher era sempre bem-vinda. Engana-se, porém, quem pensa nesses salões apenas como eventos de manifestações artísticas. Essas rodas sociais eram um espaço privado que “dava continuidade à esfera pública, onde as transferências econômicas e os grandes negócios se concretizavam” (CARVALHO, 1995, p.2-3). A maior preocupação da revista era multiplicar os canais de participação das mulheres em todas (ou pelo menos em inúmeras) esferas sociais: no lar, na escola, nos salões, nas ruas – naturalmente as “reportagens de rua” eram restritas a fatos importantes, como o caso da recepção a Santos Dumont, pelo seu regresso de Paris, (O LYRIO, nº 12, p.8), no final de 1903.

          A revista proporcionava o encontro de escritoras renomadas, como: Ignês Sabino (romancista abolicionista), Francisca Clotilde, Francisca Izidora (jornalista), Rosalia Sandoval, Santina Potiguaré, entre tantas outras. Tinha como secretária Cândida Duarte de Barros, substituída, a partir do nº 3 (1903:01) por Úrsula Garcia. E, como colaboradoras fixas, do primeiro até o último número, Maria Augusta Meira de Vasconcelos Freire (advogada, como mencionamos e a primeira mulher a candidatar-se a deputada, em 1890), Edwiges Sá Pereira (feminista), Adalgisa Duarte Ribeiro e Luiza Ramalho. No número 17 (1904:10), contamos trinta e três colaboradoras brasileiras – desde o Amazonas ao Rio Grande do Sul – e, no exterior, a revista mantinha contato com colaboradoras no Uruguai, em Montevidéu, na Argentina, em Buenos Aires, e na França, em Paris, Lyon e Vincènnes. O conteúdo da revista era composto de resenhas, notas de obras recebidas, perfis bibliográficos, e até mesmo as raras seções de passatempos, na última página, envolviam literatura, mitologia, história e cultura geral. A prosa e a poesia eram escritas em estilo predominantemente romântico, como era de se esperar, pois no Brasil, principalmente no tocante às mulheres, ainda predominavam as idéias românticas européias. 

          As parcerias textuais entre as escritoras eram bastante comuns, dentro da revista, acabando por tecer uma rede de homenagens, motes e respostas, que nos lembram os hipertextos contemporâneos: Ignez Sabino com Francisca Izidora, Alcina Leite com Rita Sousa, Cândida Barros com Francisca Clotilde, entre muitas outras. No entanto, foram Amélia Beviláqua e Úrsula Garcia as que mais se destacaram pela interatividade. Vamos nos ater, neste Colóquio, apenas a entrever o grau da parceria particular entre Amélia e Úrsula, e, depois, finalizar com duas observações genéricas, que nos parecem de capital importância no contexto de nosso temário.
          Úrsula Garcia da Costa Barros, nasceu em 03/03/1864, em Aracati, Ceará, e faleceu em Recife, Pernambuco, a 16/07/1905, um ano e um mês após o último número da revista. Sobre Úrsula, ou Ursulinha, como era chamada pelos parentes e amigos íntimos, escreveu Amélia, em seu livro Impressões, de 1929:
(...) Muito depressa, seus contos, poesias, traduções e muitos outros trabalhos esplêndidos foram objeto de referências elogiosas de diversos literatos do país. Até esse momento, viveu obscura, guardada em casa, como uma flor, que se esconde, temendo que a luz lhe ofenda as pétalas mimosas. Seus dias eram passados, singelamente, ao lado da família, onde era idolatrada (BEVILÁQUA, 1929, p. 73-74).
(...) Na posição de secretária do Lyrio, despachava a correspondência, escrevendo, além disso, para todos os números, artigos, poesias, notícias e ainda se incumbia dos sobrescritos e :ainda se incumbia dos sobrescritos e outros arranjos referentes ao seu cargo. E o tempo ainda lhs sobrava para traduzir romances, que publicava no Correio de Recife, e para ajudar a mãe nos trabalhos de casa (BEVILÁQUA, 1929, p.76).
          A pesquisadora Algemira Mendes afirma que, mesmo depois de morta ainda vieram, de muitos pontos do Brasil, cartas a pedirem seu autógrafo. Amélia Beviláqua dedicava a Úrsula uma grande amizade e impressionava-a não somente sua sagaz inteligência, mas também um certo misticismo, que a envolvia numa aura de divindade.
Entre os que tiveram a sagração da artista, pode-se gravar o nome de Úrsula Garcia. Não deixou talvez renome. Em primeiro lugar, era mulher, depois, custa muito reconhecer a perfeição do que realmente é bom. Mas deixou funda lembrança nos que a conheceram intimamente e assistiram à sua deslumbrante ascensão (BEVILÁQUA, 1929, p.80).
          O carinho era mútuo. Na última visita dominical que Úrsula fez à amiga, escreveu à margem de seu retrato um poema que começa e termina assim:
Um ano apenas tem nossa amizade
E o coração já não lhe sabe a idade.
(...)
Assim, a vós eu devo a vida dos meus versos,
A vida dos meus contos, a vosso coração:
Uma os ergueu do pó, donde eram dispersos,
Outra lhes deu ao sol lugar e proteção...
(BEVILÁQUA, 1929, p.86).
Convém ressaltarmos que a revista salvou não só Úrsula, porém muitas outras autoras da obscuridade e do anonimato, propiciando a elas projeção nacional e até internacional.
            Das parcerias textuais e paratextuais de O Lyrio inferimos duas interessantes conclusões. Primeira: no âmbito da revista tais parcerias não significam somente resposta a textos, aqui e ali, ou mesmo material hipertextual; elas soam como estratégia de união e luta, irmanando mulheres em ideais que ultrapassam o campo literário, transgredindo e reagindo contra o status de total submissão vigente. “O Lyrio defendia, entre outras causas, a educação das mulheres, bem como a igualdade e os seus direitos” (MENDES, 2004, p.58), embora esses direitos reivindicatórios na época fossem apenas o de igualdade de oportunidade de ensino para todos. Em artigos muitas vezes polêmicos, embora escritos em estilo dúbio, de avanços e recuos, havia ferrenha crítica ao ensino ministrado nos colégios e a pouca oportunidade de acesso às mulheres mesmo a este ensino deficitário – vide Maria Augusta Meira de Vasconcelos Freire em “A instrução da mulher” (O LYRIO nº 2, 1902, p.1). No nº 4 (1903:1) a mesma colunista vai mais longe e aborda a necessidade de instalação de mais Universidades em nosso país. No número seguinte, em carta aberta à Amélia Beviláqua, EDWIGES DE SÁ PEREIRA (nº 5, 1903, p.9), prossegue o assunto, indagendoando: “Como exigir que a mulher ignorante aperfeiçoe o coração de uma criança, combatendo os seus defeitos? (...) Tem-se feito alguma coisa, é verdade, em prol da educação da mulher, mas não se fez tudo e muito resta ainda a fazer”. O Lyrio foi um instrumento combativo de luta em prol da emancipação política feminina, através da educação e da cultura.
A segunda observação diz respeito à “arte de flanar”. Como afirmou JOÃO DO RIO (1987:5) em A alma encantadora das ruas (1908), “flanar é a distinção de perambular com inteligência” e era nas páginas de O Lyrio que as mulheres circulavam, vagueavam, transitavam, se encontravam, explanavam suas idéias em público, expondo-se, e expondo pela primeira vez, não só o seu universo particular, como também a sua visão da sociedade em geral. As páginas impressas eram, portanto, as suas vias de acesso à participação social, as avenidas, pelas quais flanavam inteligentemente, à vontade, embora às vezes com passos tímidos e ainda incertos; e, O Lyrio, um local cosmopolita, era um logradouro urbano, apenas não tão feérico quanto o do Rio de Janeiro, ou seja, sem o five tea o’clock da Confeitaria Colombo. Uma fulguração mais recatada, sem dúvida, mas não menos importante, em que O Lyrio destaca-se por mostrar, flagrantemente, que a belle époque no Brasil, no que se refere às mulheres, aliou-se às aguerridas parcerias textuais da imprensa literária – esta sob o inocente disfarce de líricos lírios –, para configurar a nossa literatura e, de forma ainda mais ampla, para estabelecer os contornos mais precisos de nossa identidade nacional.

Bibliografia:

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BRAGA, Adriana. Corpo e Mídia: fragmentos históricos da imprensa feminina no Brasil. I Encontro Nacional da Rede Alfredo de Carvalho, para a Preservação da Memória e a Construção da História da Imprensa no Brasil. Tema Central: Mídia Brasileira: 2 séculos de História. Rio de Janeiro: 1-5 de junho de 2003. Disponível em http://www2.metodista.br/unesco/Iencontro_redealcar.htm.

CAIRO, Luiz Roberto. Memória cultural e Construção do Cânone Literário Brasileiro. In Fronteiras imaginadas. Organização Eduardo F. Coutinho. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2001.

CARVALHO, KÁTIA. A imprensa feminina no Rio de Janeiro, anos 20: um sistema de informação cultural. Brasília: IBICT, Revista Ciência da Informação – Vol 24, número 1, 1995. Artigo disponibilizado em: dici.ibict.br/archive/00000146/01/Ci%5B1%5D.Inf-2004-582.pdf  Acessado em: 24.maio.2008

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COUTINHO, Luiz Edmundo Bouças. Gonzaga Duque e as molduras do “Idioleto Decadentista”. In Arte e Artifício: Manobras de fim-de-século. Organização: Luiz Edmundo Bouças Coutinho. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002.

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JORGE, Fernando. Vida e poesia de Olavo Bilac. 4ª ed., revista e aumentada. Introdução de Menotti Del Picchia. São Paulo: T.A. Queiroz, Editor, 1992.

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SALGADO, Marcus. A vida vertiginosa dos signos. São Paulo: Editora Antiqua, 2007.

Leila Míccolis*
[Carioca, 30 livros editados (poesia e prosa), obras publicadas na França, México, Colômbia, África, Estados Unidos e Portugal, teatróloga, roteirista de cinema e escritora de novelas de tv, entre elas: “Kananga do Japão”, “Barriga de Aluguel” e “Mandacaru”. Elaborou verbetes para a “Enciclopédia de Literatura Brasileira” (MEC/OLAC) e também publicou: “Catálogo da Imprensa Alternativa”, 1986, pela RioArte/Prefeitª do RJ. Publicada na Revista Poesia Sempre (Biblioteca Nacional/MEC), consta do Banco de Dados Informatizados do Banco Itaú - Módulo Literatura Brasileira, Setor Poesia (categoria: “Tendências Contemporâneas”) e dos “Cadernos Poesia Brasileira” - vol. 4, “Poesia Contemporânea”, editado pela mesma instituição, 1997. Sua obra é citada e analisada por escritores como: Affonso Romano de Sant’Anna (Ed. Vozes/1978), Glauco Mattoso (Ed. Brasiliense/1981), Jair Ferreira dos Santos (idem/1986), Assis Brasil (Ed. Imago/FBN/UMC, 1998). Co-edita Blocos, com Urhacy Faustino, revista impressa e eletrônica.]

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