segunda-feira, maio 31, 2010

Ensaio Literário (Os) duplo(s) em Benjamim por Abílio Pacheco*


(Os) duplo(s) em Benjamim

Dos romances de Chico Buarque, tanto Benjamim quanto Budapeste são obras que exploram a temática do duplo. Como a crítica  assim já se pronunciou sobre este e – pelo que sabemos – nada disse sobre aquele (talvez por ser menos evidente ou por haver interesse em destacar/ressaltar outro(s) aspectos(s) da obra), aqui tentaremos fazê-lo.
O protagonista do segundo romance de Chico Buarque é um indivíduo cuja degradação emotiva causou-lhe a física e a profissional. Perturbado e torturado pelo sentimento de culpa pela morte de Castana Beatriz, ex-namorada e então militante de esquerda que morrera fuzilada, quando ele, ao tentar espioná-la, se deixou seguir inconscientemente, Benjamim encontra, nos anos 90, em Ariela Masé, que julga ser filha de Castana, as esperanças de reconstruir seu paraíso perdido . No [106] entanto, os amigos de Jeovan, um policial entrevado, namorado de Ariela, fuzilam Benjamim no mesmo prédio onde morrera Castana Beatriz, o sobrado verde-musgo no fim da rua 88. O romance é, então, a narrativa da vida de Benjamim Zambraia a partir de sua morte por fuzilamento. As ações ocorridas no passado e no presente aparecem duplicadas em simetria (ou quase), o enredo apresenta uma lógica interna difícil (próxima da escrita de livre associação), cujo encadeamento ocorre pela técnica cinematográfica usada pelo autor, os personagens – os principais e alguns dos secundários – refletem em espelho ou em paralelo outros personagens, todos sempre em fluxo deambulatório e esquizofrênico constante.
Benjamim é um romance de forte conteúdo sinestésico, sobretudo visual. A própria metáfora da câmera como recurso fantástico instaurador/articulador do processo narrativo já nos revela isso; os cortes, as montagens e outros procedimentos peculiares ao cinema também. O romance joga com a imagem como um jogo de espelho (um labirinto paralelo infinito) com imagens repetidas e duplicadas e novamente duplicadas até a exaustão.
O protagonista, que na década de 90 tem 55 anos, é um ex-modelo-fotográfico que se auto-aposentou aos 40, quando transformou todas as reservas financeiras em ouro e distribuiu pelos meses referentes a sua expectativa de vida (80 anos).
Na década de 60, Benjamim, no auge de sua vida profissional e pessoal, tinha bons contratos, podia manter relações sexuais com a mulher que desejasse. Além disso, tinha um ótimo vigor físico, era um bom nadador, um excelente jogador de vôlei. Nessa época, conhece Castana Beatriz com quem [107] tem um relacionamento amoroso frustrante, pois culmina na sua perda total, precedida de algumas perdas parciais, nas quais a imagem paterna (boa, má ou ambivalente), como elemento ligado à angústia de castração, é forte. A primeira perda ocorre quando o pai de Castana a embarca para Europa, a segunda quando ela retorna e troca Benjamim por um professor ativista político e a terceira quando Castana e seu amante são fuzilados pelas “autoridades” (a ditadura?) – maior representação da figura paterna, do pai mau contra quem o filho é impotente .
Entretanto a terceira perda de Castana não é definitiva, pois Benjamim, que a esperara voltar da Europa e que a esperara voltar a seus braços (primeira e segunda perdas) transfere a espera por Castana para espera pelo seu (sua) filho(a).
Uma espera de 25 anos vazios, em que Benjamim, pela manhã, faz flexões e diz “Bom dia, Pedra” (BUARQUE, 1995, p. 57), anda pelo Largo do Elefante, entre mendigos, almoça e/ou janta no Bar-Restaurante Vasconcelos, mantém relações com uma prostituta ou masturba-se no banheiro. Sempre “filmado” pela câmera adquirida na adolescência e, embora abolida na velhice, “criara autonomia”. (BUARQUE, 1995, p. 11)
O complexo de perseguição, o trauma e a culpa pela perda de Castana (ou o recalque provocado pela perda) que se expressam nas formas de auto-punição de que são resultados a decadência física e profissional e, no limite, o insulamento (a rejeição a novos afetos – daí a fuga em relacionamentos fortuitos com prostitutas e a prática da masturbação) transformam Benjamim em um indivíduo isolado que vive “como um simulacro de si mesmo” (Paz, 2001), num mundo de ilusão (forma [108] evidente de duplicidade). Tal recusa do real é perceptível por Benjamim não desmontar o ‘quarto da criança’ e fugir de amigos que lhe pudessem trazer a lembrança de Castana à tona. Entretanto, “quem recusa o real, teu seu retorno com juros” (Rosset apud Martinho, 2005), pois ninguém “escapa ao destino” (Martinho, 2005). A recusa do real, para Rosset, liga-se à origem do duplo.

Numa das idas ao Bar-Restaurante Vasconcelos, Benjamim vê um casal discutindo. A moça, Ariela Masé, traz à tona a lembrança de Castana. Embora tenha a sensação de (re)conhecê-la (unheimlich), Benjamim deu-se conta realmente disso apenas ao consultar, em um arquivo de fotografias, as pastas da década de 60 e perceber a semelhança entre Castana Beatriz e Ariela Masé – para ele, mãe e a filha.
A partir de então, Ariela é o duplo de Castana e Benjamim (55 anos) é o duplo de si mesmo (aos 25). Ela repete em paralelo várias ações de Castana e ele repete suas próprias ações. Castana/Ariela procuram as chaves na bolsa enorme, enquanto repetem: “as chaves, as chaves”; quando riem, abrem bem a boca e jogam os cabelos para trás; correm de Benjamim com as sandálias penduradas na mão; odeiam a presença da Pedra do Elefante e por causa dela correm de Benjamim pelas escadas, pois não têm paciência de esperar o elevador.
Castana/Ariela vivem uma situação de vigilância/super-proteção afetiva: Castana pelo pai, Ariela pelo namorado; e uma situação de repressão armada (implicititamente): Castana pelas “autoridades”, Ariela pelo grupo de extermínio de que faz parte seu namorado.
Castana/Ariela traem Benjamim com alguém ligado à política: Castana com o Prof. Douglas, Ariela com Alyandro (ambos personagens de vida dupla, o primeiro tem uma vida pública como professor, mas uma identidade oculta de ativista [109] político; o outro, uma vida pública de político em ascensão, mas um passado de ‘puxador’ de automóveis ).
Castana/Ariela têm suas imagens ligadas à morte: Castana morre junto com o professor Douglas no sobrado verde-musgo, depois que Benjamim deixa-se involuntariamente seguir pelas ‘autoridades’; Ariela deixa-se (não tão involuntariamente) seguir até o mesmo sobrado, para que o grupo de extermínio que fuzilaria Alyandro , encontrasse Benjamim.
Em Benjamim, os duplos desfilam como na tragédia grega de Sófocles . Além do protagonista, suas amadas Castana/Ariela, bem como o Prof. Douglas e Alyandro/Aliandro, são duplos: Leodoro, Dr. Cantagalo, o taxista Barretinho/Zilé, Zorza... Duplicadas são também as imagens, como a do camburão que Benjamim vê no Largo do Elefante, na década de 90, recolhendo mendigos, na década de 60 recolhendo estudantes.

A recusa do real, o simulacro, o narcisismo, a duplicação do protagonista e de outros personagens, além do trauma de perseguição e do complexo de castração ligado à figura paterna, são elementos que apontamos para afirmar que (juntamente com Budapeste) mais um espaço na prateleira dos romances do duplo deve ser reservado para o romance Benjamim.

Abílio Pacheco*


[Abilio Pacheco, nasceu em Juazeiro (BA), viveu a primeira infância em Coroatá (MA), dos 07 aos 27 morou em Marabá, e hoje reside em Belém (PA). Estudou Eletricidade no SENAI-Marabá, fez Magistério na Escola Estadual Dr. Gaspar Vianna, cursou Licenciatura Plena em Letras na UFPA-Marabá e Mestrado em Letras – Estudos Literários na UFPA-Belém. Trabalhou como eletricista, foi bibliotecário por cinco anos e há 11 anos atua no magistério. Trabalhou 05 anos no CEFET-PA (hoje IFPa), onde ajudou na implantação do curso de Letras e foi coordenador do mesmo. Atualmente é professor da UFPA, Campus de Bragança. Aos 17 anos obteve o primeiro destaque em certames literários com o poema “Elegia de Maria”. Publicou Poemia (poesia – semiartesanal) em 1998; Mosaico Primevo (poesia) em 2008; e Riscos no Barro: ensaios literários (2009). É um dos organizadores da Antologia Literária Cidade. É membro correspondente da Academia de Letras do Sul e Sudeste Paraense com sede em Marabá. É também contista e cronista, e está com um projeto de narrativa longa ‘em gestação’.]

 Abílio Pacheco*

Pacheco, Abilio. O(s) duplo(s) em Benjamim. In Pacheco, Abilio. Riscos no Barro. Belém: Edição do Autor, 2009. pp, 105-110.

Referências:
BUARQUE, Chico. Benjamim. São Paulo: Companhia das Letras. 1995.
FERREIRA. Vera Rita de Mello. O estranho. Monografia do curso de especialização em Psicanálise. 1983. Extraído de [http://www.verarita.psc.br/html/unheim.html] em 31 de Janeiro de 2005.
FREUD, Sigmund. Uma criança é espancada. Sobre o ensino da psicanálise nas universidades e outros trabalhos. Tradução: Eudoro Augusto Macieira de Souza. Rio de Janeiro: IMAGO, 1976.
MARTINHO. Cristina. Articulações do duplo na literatura fantástica do século XIX. Extraído de [http://www.filologia.org.br/viicnlf/anais/caderno09-04.html] em 31 de janeiro de 2005.
PAZ, Ravel Giordano. Esquizofrenia, simulacro e identidade: tensões dialéticas na ficção brasileira contemporânea. [on line] Disponível na Internet via WWW. URL: http://terravista.pt/copacabana/ 6677/esquizo.html. Maio de 2001.

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