domingo, maio 30, 2010

Ensaio Literário sobre Camões...por Amélia Pinto Pais


A Natureza Nos Versos De Camões - A Flora - E A Necessária Busca Do Paraíso Perdido  


A natureza assume, muitas vezes, em Camões , a faceta de topos clássico e renascentista, contraponto ou cenário do dizer das emoções mais vividas. Como tal, surge-nos, muitas vezes, como elemento de comparação, como se pode ver, por exemplo, nos conhecidos versos do Canto I, 35, pretendendo significar o tumulto havido na discussão entre os deuses reunidos em consílio:  
Qual Austro fero ou Bóreas, na espessura,
De silvestre arvoredo abastecida,
Rompendo os ramos vão da mata escura
Com ímpito e braveza desmedida,
Brama toda a montanha, o som murmura,
Rompem-se as folhas, ferve a serra erguida:
Tal andava o tumulto, levantado
Entre os Deuses, no Olimpo consagrado.  

ou em III, 134                         
«Assi como a bonina, que cortada
Antes do tempo foi, cândida e bela,
Sendo das mãos lacivas maltratada
Da minina que a trouxe na capela,
O cheiro traz perdido e a cor murchada:
Tal está, morta, a pálida donzela,
Secas do rosto as rosas e perdida
A branca e viva cor, co a doce vida.»
em que se conclui, com considerações em tom elegíaco, o episódio de Inês de Castro, versos logo seguidos pela conhecida alusão à «fonte dos Amores»,
[...]


Vede que fresca fonte rega as flores,
Que lágrimas são a água e o nome Amores.»
Como topos clássico, a Natureza é verdejante e convidativa - alegre, pois, - mas com tendência a reflectir estados de alma, quando não a proporcioná-los, numa visão subjectiva, portanto, como se pode ver em, entre outros,



A fermosura desta fresca serra
E a sombra dos verdes castanheiros,
O manso caminhar destes ribeiros,
Donde toda a tristeza se desterra;

O rouco som do mar, a estranha terra,
O esconder do Sol pelos outeiros,
O recolher dos gados derradeiros,
Das nuvens pelo ar a branda guerra;

Enfim, tudo o que a rara natureza
Com tanta variedade nos of'rece,
Me está, se não te vejo, magoando.

Sem ti, tudo me enoja e me aborrece;
Sem ti, perpetuamente estou passando,
Nas mores alegrias, mor tristeza.
Ou em:

Alegres campos, verdes arvoredos,
Claras e frescas águas de cristal,
Que em vós os debuxais ao natural,
Discorrendo da altura dos rochedos;

Silvestres montes, ásperos penedos,
Compostos em concerto desigual,
Sabei que, sem licença de meu mal,
Já não podeis fazer meus olhos ledos.

E, pois me já não vedes como vistes,
Não me alegrem verduras deleitosas,
Nem águas que correndo alegres vêm.

Semearei em vós lembranças tristes,
Regando-vos com lágrimas saudosas,
E nascerão saudades de meu bem.

Esta íntima relação natureza / Eu vai ao ponto, como sabemos, de se poder ver a natureza alegre - leda - tornar-se triste:
                                               
Aquela triste e leda madrugada,
Cheia toda de mágoa e de piedade,
Enquanto houver no mundo saudade,
Quero que seja sempre celebrada.

Ela só, quando amena e marchetada
Saía, dando ao mundo claridade,
Viu apartar-se d a outra vontade,
Que nunca poderá ver-se apartada.

Ela só viu as lágrimas em fio,
Que de uns e de outros olhos derivadas
Se acrescentaram em grande e largo rio.

Ela ouviu as palavras magoadas
Que puderam tornar o fogo frio
E dar descanso às almas condenadas.

A mesma natureza amena e favorável, proporcionadora de uma íntima satisfação dos sentidos e da alma, é a natureza apresentada na descrição da Ilha de Vénus ou dos Amores, em que cada pormenor e alusão se povoa de uma subtil ou explícita vertente erótica - natureza cujo fruição conduz à verdadeira glorificação dos heróis que souberam trilhar , o « caminho da virtude, alto e fragoso,/Mas, no fim, doce, alegre e deleitoso» (IX,90), nesse itinerário de iniciação que é, afinal, o do «bicho da terra tão pequeno» (I, 106) agora elevado à categoria de imortal e destronando os deuses («a quem Neptuno e Marte obedeceram», I,3), como Baco temia - «temo / Que do Mar e do Céu, em poucos anos,/Venham Deuses a ser, e nós, humanos.»(VI,29)


Nessa Ilha de todos os Amores, paraíso recuperado pelos humanos dignos do Prometeu e do Ícaro, amaldiçoados por todos os Velhos do Restelo, a natureza mostra-se no seu esplendor total - dela salientemos apenas a flora:


Três fermosos outeiros se mostravam,
Erguidos com soberba graciosa,
Que de gramíneo esmalte se adornavam,
Na fermosa Ilha, alegre e deleitosa
Claras fontes e límpidas manavam
Do cume, que a verdura tem viçosa;
Por entre pedras alvas se deriva
A sonorosa linfa fugitiva.

Num vale ameno, que os outeiros fende,
Vinham as claras águas ajuntar-se,
Onde hüa mesa fazem, que se estende
Tão bela quanto pode imaginar-se.
Arvoredo gentil sobre ela pende,
Como que pronto está pera afeitar-se,
Vendo-se no cristal resplandecente,
Que em si o está pintando propriamente.

Mil árvores estão ao céu subindo,
Com pomos odoríferos e belos;
A laranjeira tem no fruito lindo
A cor que tinha Dafne nos cabelos.
Encosta-se no chão, que está caindo,
A cidreira cos pesos amarelos;
Os fermosos limões ali, cheirando,
Estão virgíneas tetas imitando.

As árvores agrestes, que os outeiros
Têm com frondente coma enobrecidos,
Álemos são de Alcides, e os loureiros
Do louro Deus amados e queridos;
Mirtos de Citereia, cos pinheiros
De Cibele, por outro amor vencidos;
Está apontando o agudo cipariso
Pera onde é posto o etéreo Paraíso.

Os dões que dá Pomona ali Natura
Produze, diferentes nos sabores,
Sem ter necessidade de cultura,
Que sem ela se dão muito milhores:
As cereijas, purpúreas na pintura,
As amoras, que o nome têm de amores,
O pomo que da pátria Pérsia veio,
Milhor tornado no terreno alheio

Abre a romã, mostrando a rubicunda
Cor
, com que tu, rubi, teu preço perdes;
Entre os braços do ulmeiro está a jocunda
Vide, cuns cachos roxos e outros verdes;
E vós, se na vossa árvore fecunda,
Pêras piramidais, viver quiserdes,
Entregai-vos ao dano que cos bicos
Em vós fazem os pássaros inicos.

Pois a tapeçaria bela e fina
Com que se cobre o rústico terreno,
Faz ser a de Aqueménia menos dina,
Mas o sombrio vale mais ameno.
Ali a cabeça a flor Cifísia inclina
Sôbolo tanque lúcido e sereno;
Florece o filho e neto de Ciniras ,
Por quem tu, Deusa Páfia, inda suspiras.

Pera julgar, difícil cousa fora,
No céu vendo e na terra as mesmas cores,
Se dava às flores cor a bela Aurora,
Ou se lha dão a ela as belas flores.
Pintando estava ali Zéfiro e Flora
As violas da cor dos amadores,
O lírio roxo, a fresca rosa bela,
Qual reluze nas faces da donzela;

A cândida cecém, das matutinas
Lágrimas rociada, e a manjarona;
Vêem-se as letras nas flores Hiacintinas ,
Tão queridas do filho de Latona;
Bem se enxerga nos pomos e boninas
Que competia Clóris com Pomona.
Pois, se as aves no ar cantando voam,
Alegres animais o chão povoam.

(IX,54 e ss.)  

Como fez notar o Conde de Ficalho na sua obra «A Flora d'Os Lusíadas» esta é uma flora ocidental, que Camões bem conhecia - mas nunca até Camões, julgo, ela fora assim vista como um tão vasto reportório de espécies favoráveis aos sentimentos e actos amorosos que em tal Ilha se iriam viver,e que Camões sintetiza na célebre estrofe 83 do Canto IX, ao dizer:


O que mais passam na manhã e na sesta,
Que Vénus com prazeres inflamava,
Milhor é exprimentá-lo que julgá-lo;
Mas julgue-o quem não pode exprimentá-lo.  

Uma natureza assim redime os corpos cansados de tantos trabalhos e consagra o erotismo / amor dos corpos como prémio reservado aos espíritos generosos. Nunca tal se vira no Ocidente, julgo, a não ser, em parte, nos frescos da Capela Sixtina de Miguel Ângelo. No Oriente, sim, que nunca o corpo por lá fora visto como obstáculo à mais alta espiritualidade - como a atestam as lições do KamaSutra e as esculturas dos templos hindus. Teria também Camões por lá aprendido a lição - e em simultâneo, alguma resposta para o seu lirismo tão perturbado pela urgência dos sentidos, capaz de pôr em questão as vivências amorosas que, literariamente, no Ocidente judaico-cristão apenas podiam ser neoplatónica?
Mas também uma Natureza outra que a europeia enche os versos de Camões: assim, os produtos mais conhecidos como a pimenta («Leva pimenta ardente, que comprara»- o «negro cravo», a cânfora, o sândalo («Ali também Timor, que o lenho manda /Sândalo salutífero e cheiroso»-X,134), a mirra , a palmeira, o aloé, o pau brasil, ou «pau vermelho», como prefere dizer (X,140), o benjoim, a cânfora e outros produtos, de que se não esquece a pátria de origem, com perfeita exactidão científica.


Nem sempre em Camões, porém, as terras de além-mar que pôde conhecer, «cum saber só de experiências feito», são motivo de alegrias. Não poderia aqui esquecer o quanto a natureza hostil contribui para essa «alma toda chagada em carne viva» da Canção IX, de que transcrevo apenas alguns versos:  



Junto de um seco, fero e estéril monte,
inútil e despido, calvo, informe
,
da natureza em tudo aborrecido,
onde nem ave voa, ou fera dorme,
nem rio claro corre, ou ferve fonte,
nem verde ramo faz doce ruído;
cujo nome, do vulgo introduzido,
é Félix, por antífrase infelice;
[.......................]
Aqui me achei gastando uns tristes dias,
tristes, forçados, maus e solitários,
trabalhosos, de dor e de ira cheios,
não tendo tão-somente por contrários
a vida, o sol ardente e águas frias,
os ares grossos, férvidos e feios
;
[.......................]


Trata-se, aqui, de uma natureza hostil que Camões situa no Cabo Guardafui, na região do Corno de África. Porque esteve e sofreu também, esta excepção no conjunto dos seus poemas, absolutamente fora do «locus amoenus» dos clássicos, uma natureza, na verdade, mais próxima do Inferno de Dante que dos poetas gregos e romanos.
Mas esta, é, de facto, a excepção. Como o são a descrição da tempestade, numa Elegia e n' Os Lusíadas. A regra geral é a da natureza alegre, esplendorosa, capaz de saciar as pulsões do corpo e proporcionar o vigor das almas. Uma natureza amena e bela - como o fora o Jardim das Delícias, património de Adão e Eva, anterior à própria ideia de pecado.


«Os Lusíadas» são também, então, um canto à reconquista desse Paraíso perdido, onde as Ninfas, ainda não poluídas pelas águas dos tejos e dos mondegos deste planeta, (e não apenas as do Tejo e do Mondego) inspiravam os poetas que, agradecidos, as celebravam em versos imortais.

Amélia Pais*
[Amélia  Pais*, portuguesa, vivendo em Leiria. Professora e autora de livros e artigos  -ensaios  literários e de divulgação de autores portugueses  para adultos e crianças(um dos quais-Fernando Pessoa, O menino da sua Mãe, já publicado em Junho de 2009 no Brasil  pela Companhia das Letras e outro-Padre António Vieira, o Imperador da Língua Portuguesa,com publicação prevista para Junho de 2010 pela mesma editora brasileira. É também autora de uma História da Literatura Portuguesa e de livros de inicação sobre autores portigueses destinados a crianças.
Esporadicamente escreveu alguns(poucos) poemas e, por isso, não se considera propriamente poeta .]

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